sábado, 12 de março de 2011

"Sinfînica brasileira - Tem conserto?"

Crise atual na Sinfônica Brasileira traz à tona antigos problemas estruturais do mundo clássico no País

Enquanto um funcionário limpa cuidadosamente o busto de bronze de Getúlio Vargas, que observa solitário o vasto saguão do Ministério do Trabalho, no centro do Rio, músicos começam a chegar de todos os lados. Instrumentos na mão, discurso na ponta da língua. "Não dá para aceitar mais isso", diz um deles. "Olha só, eles suspenderam o seu Virgílio, 80 anos, mais de 40 de orquestra", reclama outro. Pouco depois, eles já são um grupo de quase cem pessoas - e na avenida em frente do ministério, tocando Aquarela do Brasil, protestam contra a decisão da Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira de fazer provas de reavaliação de seus integrantes.

A cena impressiona, mas não é nova. Em 2009, situação semelhante ocorreu no Rio, desta vez com os músicos do Teatro Municipal, preocupados com sua situação trabalhista. Em Porto Alegre, também em 2010, músicos da Sinfônica entraram em greve. Em São Paulo, na semana passada, um maestro interrompeu um concerto da Sinfônica Municipal para protestar contra a situação dos músicos, que, entre outras coisas, ficaram três meses sem salário, problema que já dura décadas e que, em anos anteriores, já provocou diversas paralisações e passeatas nas escadarias do Teatro Municipal.

Salários baixos, falta de verbas, relação conturbada entre músicos, maestros e administrações de orquestras e teatros: se os problemas são antigos e, mais ainda, facilmente identificáveis, por que permanecem, transformando paralisações e crises como a que hoje atormenta a Sinfônica Brasileira em fantasmas sempre presentes na vida musical brasileira?

"Desde a Revolução Industrial e os primórdios de um sistema social baseado na geração do lucro, as artes passaram a ter papel delicado no equilíbrio da sociedade. Investir na estrutura de um teatro e em todos os artistas que dele fazem parte passou a representar despesa expressiva para o orçamento público e nem todos os governantes estão dispostos a priorizá-lo. O mesmo critério se aplica em relação às orquestras - são ambos deficitários, com uma folha orçamentária colossal que só pode ser provida através de doações privadas ou radicais transformações estatutárias que permitam a absorção de recursos", diz o maestro Isaac Karabtchevsky, diretor das sinfônicas da Petrobras e de Heliópolis. "A implementação de um projeto como a Osesp, ilha que todos tentam, afoitamente, imitar, passa inevitavelmente pelo impulso político, pela determinação de seus líderes e por uma participação comunitária que lhe dê respaldo. Sem isso, estamos acostumados a ver na história das orquestras o mesmo desenho dos eletrocardiogramas: linhas ascendentes e descendentes", continua.

O crítico Clóvis Marques também se detém sobre a questão da arte no contexto econômico. "Existe um problema estrutural básico: interesse traduzido em dinheiro. Ele está ligado a uma carência de base: nossa sociedade funciona na base da "mercadorização" de tudo e a música clássica não é um "produto" de massa no Brasil. As crises semipermanentes de orquestras como a OSB e de instituições como os Municipais do Rio e de São Paulo refletem essencialmente uma demanda morna da sociedade: se o Rio - seus cidadãos e contribuintes, seus melômanos endinheirados, seus governantes - quisesse ter uma orquestra sinfônica de padrão internacional e uma casa de ópera digna deste nome, já se teria mobilizado para isso."

Política. Em um contexto no qual as principais orquestras e teatros brasileiros estão ligados ao Estado, parece natural que arte e política se misturem. O maestro Ricardo Prado, no entanto, vê algumas sutilezas nessa relação e separa política de busca pelo poder. "Há várias razões para as crises, mas não tenho dúvida de que a principal delas seja a proximidade com a política. Usei essa palavra porque me parece ser a questão do poder o essencial nessas crises. Há uma porção de modelos de gestão artística funcionando no mundo há, pelo menos, décadas, nos quais o poder público participa decisivamente e onde as crises não são tão frequentes." O maestro Alex Klein segue na mesma linha. "Cria-se uma pirâmide de apoio interno nas administrações, onde a caída de um pode significar a caída de todos, e a segurança de todos esses empregos não se encontra na qualidade e sim na cumplicidade sobre padrões alheios à boa música. Qualquer pessoa que age de maneira unilateral deveria ser questionada", diz. E Prado completa: "Confiar que "gestores profissionais" são mais eficientes e que artistas são maus administradores é um mito daninho, com uma larga história de escândalos pelo Brasil afora".

Para Jesuína Noronha Passaroto, presidente da associação que representa os músicos do Teatro Municipal do Rio, as relações entre músicos e gestores precisa mudar. "Já não estamos falando só da questão da Sinfônica Brasileira, é a situação de toda uma classe artística que está em jogo. Não podemos mais ser tratados como a parte menos importante do processo, é preciso diálogo." Luzer David, representante dos músicos da OSB, concorda. "Se tivéssemos sido chamados para dialogar desde o início, hoje não estaríamos em meio a essa crise."

Há quem defenda o rompimento com as práticas estatais como único caminho para o futuro das orquestras, que deveriam buscar nova relação, mais dinâmica, com o Estado. "É uma dor de crescimento no nosso cenário musical. Vimos o mesmo acontecer na indústria há 15 anos, quando o governo FHC fez uma série de privatizações", diz Klein. "Este é um período de transição."

John Neschling, maestro responsável pela nova Osesp, faz algumas ressalvas. "Citar grandes empresas e comparar suas políticas administrativas à gestão de uma orquestra sinfônica é típico de quem nunca fez nada no campo da gestão artística. Uma orquestra não produz suco de laranja ou petróleo e seus músicos não devem ser encarados como burocratas ou fornecedores. Uma orquestra não dá lucro. Seus ganhos são mensurados por critérios muitos diferentes." Fábio Mecchetti, diretor da Filarmônica de Minas Gerais, enxerga um modelo misto como solução. "Não vejo futuro no modelo totalmente independente do Estado, pois ele está levando a uma estagnação da criatividade artística, conduzindo a diretriz artística de suas organizações rumo à apreciação de grifes em vez de valores."

RITMO NERVOSO

Agosto de 2001

Representantes dos músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo são demitidos por John Neschling após defender colega que se desentendeu com o maestro Roberto Minczuk durante ensaio na Sala São Paulo.

Dezembro de 2004

Músicos da Sinfônica Municipal de São Paulo interrompem ensaio e ameaçam não se apresentar caso a direção do Teatro

Municipal não lhes dê uma previsão de data para pagamento de salários atrasados.

Abril de 2008

Integrantes da Orquestra Sinfônica Brasileira paralisam atividades na abertura da temporada, alegando falta de diálogo entre os músicos da orquestra e a direção artística, já ocupada pelo maestro Roberto Minczuk.

Junho de 2009

A orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro promove manifestações pedindo maior presença do regente titular e questionando os planos da presidência da fundação de, segundo eles, "privatizar o teatro".

Agosto de 2010

Músicos da Sinfônica Municipal de São Paulo pedem a saída do maestro Rodrigo de Carvalho e maior atenção, por parte da Secretaria de Cultura, à temporada do grupo, "esvaziada" durante a reforma do Teatro Municipal.

Fevereiro de 2011

Em assembleia, 56 músicos da Sinfônica Brasileia optam pela não participação nas provas de avaliação propostas pela Fundação, medida, segundo os artistas, que pretendia humilhar músicos e promover demissão em massa.

(João Luiz Sampaio - O Estado de S.Paulo)

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