Afinal, ela o acompanha desde julho de 1958, quando ele gravou um 78 rpm (disco simples, de cera, com uma faixa de cada lado), contendo, num dos lados, um samba de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, "Chega de Saudade". Sua interpretação à voz e ao violão dividiu a música brasileira em antes e depois e fundou um gênero, a bossa nova.
O disco não atingiu apenas os músicos, mais equipados para entender as diversas revoluções que ele propunha --harmônicas, rítmicas, instrumentais, vocais.
Ao ser tocado no rádio, virou também a cabeça de jovens brasileiros de toda parte, para os quais, se alguém tão "diferente" como João Gilberto existia, eles podiam enfrentar a família e seguir suas vocações, não importava em que área.
Aos 27 anos recém-feitos, João Gilberto era tudo de novo naquele momento. E nem por isso se tornou o artista mais popular do Brasil.
O público comprou seu disco, mas o cantor não foi para a capa da revista "Radiolândia", para o auditório da Rádio Nacional ou para as chanchadas da Atlântida, que eram então os termômetros da popularidade. Continuou obscuro, escondido num apartamento de Copacabana, depois Ipanema, ignorado até pelos vizinhos. Nem seus melhores amigos podiam se dizer seus íntimos.
Sua voz e seu violão se estabeleceram, geraram outro 78 rpm (este contendo o ainda mais radical "Desafinado", de Jobim e Newton Mendonça) e ampliaram-se num LP --também intitulado "Chega de Saudade"--, que foi saudado ao sair, em 1959, como os 12 mandamentos da bossa nova. Mas nem a foto do cantor na capa (com o rosto sintomaticamente escondido pelo punho no queixo) o tornou uma figurinha fácil.
O que aconteceu depois --a gravação de novos discos, sua silenciosa partida para os EUA em 1962, a gravação de ainda outros discos e sua volta ao país, mais de 20 anos depois, tão silenciosa quanto a ida-- foi apenas consequência.
O que importa é que, desde aquele remoto "Chega de Saudade" em 1958, não deve ter se passado um minuto sem que alguém --primeiro, no Brasil; depois, no mundo-- tentasse reproduzir a batida mágica do violão, sintetizada por ele, e pela qual se identificou a bossa nova. E até hoje é assim.
Neste momento, em algum lugar, há alguém de violão em punho, diante de um microfone, beneficiando-se do universo sonoro de João Gilberto --de segunda ou terceira mão, não importa, e talvez sem sequer saber que existe ou existiu um João Gilberto. Se o fato de a criação viver à revelia do criador for uma medida da imortalidade, João Gilberto já é imortal.
Nas raras vezes em que se apresenta num palco, ele quer ser incorpóreo. O terno marrom da Brooks Brothers, a camisa azul-celeste da YSL, a gravata e os sapatos italianos têm a função de torná-lo invisível. Só o violão e a voz devem existir.
Assim como as paredes de seu apartamento no Leblon, do qual quase nunca sai, existem para blindá-lo do mundo.
O mundo não existe. Só existe a música. E mesmo esta é para ser cantada cada vez mais baixinho, num sopro, num sussurro, quase que só em pensamento --única forma, para João Gilberto, de vencer a cacofonia que o mundo insiste em produzir.
(FOLHA.com - Colunista Ruy Castro)